quinta-feira, 17 de junho de 2010

A desigualdade social no campo

Publicado em 16 de junho de 2010 em (5) Eu apoio a reforma agrária
Do Sul 21
Embora nascido em um ambiente rural, o historiador Miguel Carter, na infância e adolescência, também freqüentou escolas tradicionais da elite de Assunção, no Paraguai.
Hoje é professor na American University (Washington DC) e esteve em Porto Alegre para o lançamento do livro Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil.
A obra organizada pelo professor conta com 19 escritores brasileiros e estrangeiros – entre eles, cientistas políticos, sociólogos, engenheiros agrônomos, jornalistas e um poeta. Este lançamento da Editora Unesp em parceria com o NEAD (Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário) consiste em um dos documentos mais completos sobre a luta pela reforma agrária no Brasil.
Carter conversou com o Sul 21 sobre os temas abordados em sua obra, em entrevista a Josias Bervanger com fotos de Eduardo Seidl.
O senhor é professor da American University, em Washington; nasceu no México e morou no Paraguai. Por que o interesse em pesquisar a realidade fundiária do Brasil?
Eu me criei num país eminentemente rural e camponês. Quando eu era criança, Assunção, apesar de ser uma capital, ainda era uma cidade com características camponesas. Minha família também passou muito tempo no interior. Nas férias de verão eu ia para a casa de minha avó, no interior do Uruguai. Sempre convivi com camponeses. Posteriormente, como estudante, me dediquei a estudar o assunto e fiz um livro sobre o papel da igreja na queda do Stroessner [Alfredo Stroessner governou o Paraguai de 1958 a 89]. Esta foi a minha monografia de graduação. Como parte desse acúmulo, estudei por muito tempo a Teologia da Libertação. E por ser de família missionária, protestante e progressista, sempre acompanhei a luta dos movimentos populares na defesa dos direitos humanos. Depois disso, passei um tempo no Brasil na década de 80, onde aprendi mais sobre os movimentos progressistas da Igreja. Também fui ao interior, onde conheci assentamentos de colonos e pessoas comprometidas com a reforma agrária. Tudo isso despertou o meu olhar para a questão da terra no Brasil. Aliás, foi a partir das experiências no Paraguai e visitando o Brasil que eu entrei no doutorado da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, com o projeto de fazer uma pesquisa sobre a igreja e a luta pela terra no Brasil e no Paraguai. Estes dois países estão entre os mais desiguais do mundo. Isso contribuiu para produzir uma sociedade extremamente desigual na renda e no acesso a recursos básicos.
O livro tem como foco o trabalho desenvolvido para “combater os padrões históricos de desigualdade no Brasil rural”. Em linhas gerais, como a obra aborda os motivos dessa desigualdade e suas possíveis conseqüências?
A origem desta desigualdade vem desde a colônia, desde o processo de colonização dos portugueses, com a distribuição das sesmarias na região do Norte e Nordeste. As bases da estrutura agrária no Brasil também são influenciadas pelo processo de escravidão e importação dos escravos da África e aqui no Sul, com a distribuição de terras para os colonos.
No livro, eu abordo como essa desigualdade chegou a graus extremos, inclusive no período de democracia. O interessante é ver como isso se mantém e se reproduz mediante o uso de instrumentos instalados pela Constituição de 88. Vale ressaltar que ela é uma constituição democrática. Quando estudei o modelo de desenvolvimento da agricultura no Brasil, esse paradoxo chamou minha atenção. Há estudiosos defendendo que, na medida em que se instala uma democracia política, inclusive com uma constituição que garante a liberdade de expressão e eleições diretas, se estaria criando a diminuição da desigualdade na sociedade. Mas o que se vê aqui no Brasil é que esse processo não ocorreu bem desta forma, principalmente no campo. Inclusive o Censo Agropecuário mostra uma tendência de uma concentração maior de terra de 1988 para cá. Hoje em dia, mesmo tendo estes instrumentos democráticos, a elite agrária, grande parte dela mais modernizada, tem criado afinidades com as instituições públicas.
Como se dá esse processo no Rio Grande do Sul?
Aqui no Rio Grande do Sul temos o caso do Ministério Público, que chegou ao ponto de propor o fim do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Isso contraria preceitos básicos da Constituição, que prevê o direito de associação e expressão. Outro exemplo disso é o do Tribunal de Contas da União, que de uma forma ou de outra acaba perseguindo qualquer tipo de curso de formação para os grupos populares, como o MST. Também há, no Congresso Nacional, o uso das Comissões como instrumento para criar uma imagem de corrupção e criminalização dos movimentos. Estes são exemplos do arsenal utilizado pela elite agrária para combater o MST.
Claro que se sabe que esta relação promiscua entre elite agrária e o Estado faz parte da história do Brasil e do legado patrimonialista do país. Faz parte da constituição do poder local e de uma relação que ainda é muito forte entre o Ministério da Agricultura e as principais entidades ruralistas.
Isso ainda continua com muita força e com novos instrumentos públicos para servir a esses interesses. Talvez a forma mais evidente seja  o grande repasse de recursos públicos para financiar essa agricultura empresarial do agronegócio e as principais entidades ruralistas do Brasil, que hoje têm secretários, advogados e grande parte de sua estrutura financiada pelo próprio governo federal. Ninguém fala disso na imprensa, são temas abafados. Esta relação entre a elite agrária e o Estado deve ser melhor compreendida. Como numa democracia política os instrumentos institucionais acabam servindo os interesses dos grupos mais poderosos do campo? Este é um assunto que é tocado no livro, fala-se um pouco da história de como isso surgiu.
Existia uma grande expectativa de setores da sociedade, de que, com a eleição de um governo do PT no país, este quadro de concentração de terras mudaria, com um avanço da reforma agrária. Houve avanço?
Não dá para dizer que os movimentos sociais achavam que o Governo Lula teria uma linha muito arrojada e partiria para um embate forte e direto com os poderes constituídos no campo. Nem grupos como o MST acreditavam nisso. Mas estes grupos achavam que a guinada seria muito mais visível e que haveria uma reforma agrária mais progressista. O Brasil teve um processo de reforma agrária nos últimos 25 anos. Mas tudo que se fez de lá para cá daria para encaixar em uma rubrica mais ampla. Eu chamo isso de reforma agrária conservadora, muito dependente da pressão social dos camponeses, e, além disso, está engessada a um processo burocrático e jurídico. Em média são quatro anos de mobilização reivindicando um espaço para conseguirmos um assentamento. Também é um processo onde aconteceram freqüentes violações dos direitos humanos: assassinato de muitas lideranças e ao mesmo tempo muita impunidade. Um caso exemplar é o dos policias militares que tomaram parte do Massacre de Eldorado dos Carajás [sul do Pará]. Somente foram condenados pela Justiça dois dos oficiais mais graduados, mas eles nunca foram para a cadeia, por diversos argumentos artificiais.
Em que região houve maior distribuição de terras, nos últimos anos?
Houve no Governo Lula, e isso está no livro, um crescimento muito forte de distribuição de terras na Amazônia. Quer dizer, a pressão no primeiro mandato do Lula foi maior no Sul e Sudeste, mas de longe o maior crescimento dos assentamentos foi na região da Amazônia, na fronteira agrícola, onde a terra não atrapalha tanto os interesses daqueles que fazem parte da elite agrária e do agronegócio.
Mesmo o Governo Lula não fazendo uma ruptura com o padrão conservador, ele tem oferecido mais recursos para os assentamentos e há um diálogo maior com os movimentos sociais, embora isso tenha se esfriado no segundo mandato. Mas certamente pode-se afirmar que o governo Lula nunca promoveu diretamente a criminalização dos movimentos sociais, como foi feito nos mandatos dos presidentes Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso.
Mas essa “reforma agrária conservadora”, como o senhor está chamando, tem relação com a estrutura histórica do desenvolvimento agrário do Brasil?
Não há dúvida que sim. Essa correlação de forças que colocou Lula numa camisa de força, que não permite mexer muito no campo, tem a ver com a longa tradição de poder construído com a elite agrária.
Qual a influência da cobertura da mídia brasileira na reação hostil até mesmo das camadas populares, em relação ao MST e à reforma agrária? O senhor acredita que a imprensa criminaliza as lutas sociais?
Quem vai aos assentamentos e/ou acampamentos do MST dificilmente acredita nas versões criminalizadoras dos movimentos sociais que sai na imprensa tradicional. Um professor conhecido meu foi dar umas aulas em um assentamento e ficou impressionado com a organização e a legitimidade das pessoas que estavam lá. Nos locais onde acontece a reforma agrária todos produzem e trabalham de forma organizada. E essa é uma imagem que nunca saiu na imprensa, onde só aparece o lado ruim. A grande maioria dos meios de comunicação está vinculada ao agronegócio. Você pode ser um bom jornalista, ético e profissional, mas se for pautado por editores com uma linha ideológica preconceituosa, acaba por produzir estes conteúdos estigmatizantes que vemos na imprensa.
Existe espaço para a convivência da agricultura familiar com a agricultura orientada pelo agronegócio, ou as duas são antagônicas?
Há países em que as duas agriculturas convivem em comum. Um dos modelos mais voltado para a exportação, como o agronegócio e, por outro lado, uma agricultura familiar bem arrojada, que dá conta de um mercado interno. No entanto, são países com outro histórico de desenvolvimento social no campo. E, uma trajetória muito distinta de países como o Brasil e o Paraguai. Isso não é um mero detalhe. Na América Latina, as relações de forças políticas são muito mais tensas do que nos países desenvolvidos. É esse aspecto histórico que impede a convivência entre estas agriculturas no Brasil. São anos de história de um modelo colonial, escravocrata e conservador no campo. A América Latina carrega isso na trajetória de seu desenvolvimento rural, e não é bem assim para se romper com esse conservadorismo de uma hora para outra. No Brasil, o agronegócio tem uma visão hostil sobre a agricultura familiar, os assentamentos conquistados e o processo de reforma agrária.



voltar ao topo

Nenhum comentário: