quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Soledad, a mulher do Cabo Anselmo

Soledad, a mulher do Cabo Anselmo
Por Urariano Mota (*)

Recife (PE) - Quem lê “Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza da minha relação com Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a amo, de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então os leitores voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: “mas você não a conheceu?”. E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E explico, ou tento explicar.


Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo.


Soledad em Montevidéu, antes de
embarcar ao Brasil, início dos anos 1970
Entre os assassinados existem pessoas inimagináveis a qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques, vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a fugir, para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele dizia. Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza? E Soledad Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes. Ainda que não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento da guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario Benedetti; ainda que não fosse a socialista marcada a navalha aos 17 anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda assim... ainda assim o quê? Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe dá a sentença: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século”. Porque olhem só como sofre um coração. Para recuperar a vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro povos, tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar dele a maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe igual, na altura de covardia e frieza, em toda a literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele superou os agentes duplos, capazes sempre de crimes realizados com perícia e serenidade. Mas para todos eles há um limite: os espiões não chegam à traição da própria carne, da mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam da perversão, acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista, ex-preso político:


“É impressionante o informe do senhor Anselmo sobre aquele grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do Paraná. É algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as ignomínias que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao assunto.


Depois de descrever e informar sobre cada um dos cinco outros camaradas que seriam assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o histórico de família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:


‘É verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela e, nesse caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução final’.


Ao longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a metabolizar (sem perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante umas três semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo, essa voragem”.


Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem agora por que o livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato apaixonado. Não seria possível recriar Soledad de outra maneira. No título, lá em cima, escrevi Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens brasileiros. Ou Soledad, a mulher que aprendemos a amar.
*Urariano Mota é jornalista e escritor. Autor do livro “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do Cabo Anselmo, executada pela equipe de Fleury com o auxílio de Anselmo. Urariano é pernambucano, nascido em Água Fria e residente em Recife. É colunista do site “Direto da redação” e colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”

Copiado do blog: Quem tem medo do lula




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