domingo, 5 de junho de 2011

Luta, que cura! (2ª Parte)

Passa Palavra

Não era a primeira vez que eu escutava algum acampado usar a palavra “terapia” para definir o acampamento. De fato, eu também ouvi isso inúmeras vezes. Muitos outros militantes relatam ter ouvido o mesmo. Por Marco Fernandes


Por dentro e por fora é uma série de artigos de debate sobre as lutas e os movimentos sociais, da iniciativa conjunta de Paulo Arantes e do coletivo Passa Palavra. Série aberta a um amplo leque de colaboradores individuais, convidados ou espontâneos, mais ou menos empenhados (ou ex-empenhados) nas lutas concretas, que ajude a aprofundar diagnósticos sobre a sociedade que vivemos, a cruzar experiências, a abrir caminhos - e cujos critérios seletivos serão apenas a relevância e a qualidade dos textos propostos.
Leia a primeira parte deste artigo abaixo
Lampejos terapêuticos em acampamentos de sem teto [2]
“A situação da gente lá… sabe aquele nervoso que você tem no dia a dia? Quando você chega aqui é outra coisa: você começa a dar risada, brinca com um, brinca com outro… A gente se sente muito bem mesmo aqui, é muito bom! Eu chego aqui, eu deito até pelo chão. Se eu não tivesse serviço, eu ficava aqui dia e noite. Só alegria, porque é muito bom!” (Fala de Gilda, no acampamento “João Cândido”, na Zona Sul de São Paulo) [3]
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Um processo de luta massivo e bem organizado tem tudo para gerar uma forte mística e possibilitar experiências de ruptura e de desnaturalização das relações sociais determinadas pelo capital. As ocupações de terrenos vazios nas periferias das metrópoles brasileiras chegam a reunir milhares de famílias sem teto e, num período de refluxo das lutas sociais como o que vivemos, é provavelmente um dos mais eficientes instrumentos de mobilização na cidade. Ocupa-se um terreno durante a madrugada com 200 a 300 pessoas e em uma ou duas semanas essa cifra pode chegar facilmente a mil, 2 mil pessoas (ou mais) dispostas a lutar pela conquista de uma moradia digna.
Assim como os acampamentos infanto-juvenis, tradicionalmente organizados por escolas, igrejas e outras associações, que tanto sucesso fazem entre crianças e jovens, a experiência de um acampamento sem teto também provoca uma ruptura com o cotidiano, como se abrisse para as pessoas uma espécie de espaço e tempo paralelos, possibilitando experiências improváveis de serem vividas em “condições normais de vida”.
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No meio desta brecha, abre-se para o movimento a chance de questionar, na vivência cotidiana, os valores desta sociedade. De mostrar que estes não são “naturais” e que é possível tentar construir relações de forma distinta às que estamos acostumados. Uma ocupação de terra é sempre um território onde experiências de coletividade são vividas na prática como a única maneira de resistir ao poço sem fundo do individualismo contemporâneo, sobretudo para o povo pobre da periferia. Difícil viver meses num acampamento como estes e não se sentir, de alguma forma, modificado pelo que viu, ouviu e sentiu. Sempre tive a sensação de que viver um mês numa ocupação equivale a viver um ano de uma “vida normal”, tamanha é a intensidade (e mesmo a quantidade) das nossas vivências.
“É que aqui você… não sei, é tão sem explicação… você vê a vida com outros olhos, sabe? Você começa a ver as coisas diferentes. Eu, pelo menos assim, pra mim, aqui… nossa! Como mudou meu modo de pensar as coisas, sabe?” (Maria Aparecida)
No caso do MTST, desde o primeiro dia, havia um grande esforço do movimento para fomentar a criação de espaços coletivos auto-geridos pelas próprias famílias. Assim, o movimento propunha que as famílias se organizassem em “grupos”, em média de 50 a 100 famílias, a depender do tamanho da ocupação. A partir disso, havia uma divisão de tarefas no interior de cada grupo (infraestrutura, disciplina, limpeza, cozinha e coordenação geral) e se propunha a construção de “equipamentos básicos coletivos” (de lona preta): a cozinha, os banheiros e o barracão para reuniões. Cada grupo elegia seus coordenadores, que, junto a um grupo de militantes, faziam parte da “coordenação geral do acampamento”, com reuniões praticamente todos os dias e que era responsável por discutir desde questões de organização interna até as lutas que seriam feitas. Ao mesmo tempo, tais reuniões eram um espaço privilegiado para atividades de “formação política”, pois, partindo das questões mais concretas da luta da ocupação, podíamos tratar, aos poucos, do sentido de um movimento popular, do lugar da classe trabalhadora na sociedade capitalista, do sonho de construção do poder popular. Ao mesmo tempo, solidificávamos a identidade coletiva do movimento. Num espaço como este sempre se podia formar um bom número de futuros militantes.
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A organização das cozinhas se constituía como uma das principais formas de criação de vínculos do acampamento, pois demandava a divisão de diversas tarefas (quem cozinha, quem lava, quem vai atrás de doações, quem traz a lenha etc.) e muito trabalho para alimentar dezenas de pessoas diariamente. Todo este trabalho coletivo, realizado durante semanas à base de muita solidariedade, tendia a gerar um importante sentimento de pertença entre as famílias, mesmo porque se tratava de uma experiência nova para quase todos, já que uma “cozinha comunitária”, infelizmente, não faz parte do imaginário, nem da prática cotidiana de nenhum de nós.
“Aqui, eu me sinto mais em casa que na minha própria casa”. (Lu)
Imagine-se, por exemplo, a experiência vivida numa grande ocupação como a “João Cândido” (Itapecerica da Serra, 2007), onde havia cerca de 30 cozinhas como essas num terreno de mais ou menos 400 mil m². Essa forma de organização possibilitava a formação de inúmeros grupos menores no acampamento, algo fundamental para que as pessoas se sentissem acolhidas e não desaparecessem na grande massa humana que é uma ocupação desse porte. Para não falar do quão fundamental é o espaço da cozinha para a sociabilidade popular, que nos remete a odores e perfumes de memórias infantis, às lembranças do acolhimento materno e à sagrada hora da partilha do alimento. Nas palavras de uma companheira:
“Quando a gente chega aqui, a gente chega só, mas a partir do momento que você chega aqui, você cria uma família, né? Você cria uma família e nunca tá só”. (Maria Aparecida)

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As inúmeras ações diretas decididas em assembléia, como marchas, ocupações de órgãos públicos, “trancaços” de ruas e rodovias eram um importante instrumento de pressão sobre o governo. Mas além das consequências políticas, as ações diretas pareciam também surtir outros efeitos, tão importantes quanto, sobre as pessoas. Como disse uma outra companheira:
“O movimento, em si, faz bem… dá uma força assim… as passeatas que tem, dá uma melhorada na cabeça da gente. Não fica só naquela neura de preocupar com casa, filho, com o quê tá faltando… o movimento é muito bom. Se eu não tivesse cinco filhos, que dependessem de mim pra ir pra escola, eu entrava no movimento assim de cabeça, ia embora com o pessoal”. (Laura)

A companheira constatou, em si mesma, como “o movimento faz bem” e “dá uma força”. Além disso, percebeu o efeito terapêutico desencadeado por uma marcha, que nos faz esquecer por um instante os infindáveis problemas cotidianos, o aluguel atrasado, a falta de moradia - justamente o que este protesto tentava solucionar. Por um lado, como atesta a medicina, depois de alguns minutos de caminhada, o corpo começa a liberar substâncias, como as endorfinas, que nos trazem bem-estar físico e psicológico. Mas, acima de tudo, uma ação massiva de protesto proporciona a elevação da nossa auto-estima, pois nos sentimos parte de um coletivo poderoso, que se mostra capaz de desafiar à polícia e aos governos para fazer valer nossos direitos. Não são tantas as chances que o povo da periferia tem de fazer isso hoje em dia. Ainda são muito menos do que precisamos [4].
“A gente tem que mostrar pros ricos, que nós também não somos o que eles pensam, que nós não somos o lixo que eles pensam. Não somos desempregados, nem vagabundos, que nem eles dizem…Meter pau nos ricos faz bem à saúde, meu amigo!” (Lu)
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Por outro lado, o “setor de formação” do movimento (composto pelos coletivos de cultura, educação e formação política) tinha a tarefa de propor, articular e executar uma série de atividades culturais e formativas no acampamento, algo em que apostávamos como forma de trazer diversão e alegria à ocupação, mas, sobretudo, como instrumento de formação política e de construção de uma identidade coletiva ligada ao território, ao movimento e à classe como um todo.
Graças aos contatos que tínhamos, éramos capazes de trazer inúmeros grupos de teatro adulto e infantil, bandas de hip hop, de forró e samba para se apresentarem, entre outras atrações. Também projetávamos inúmeros filmes à noite, reunindo, facilmente, dezenas, ou mesmo centenas de pessoas. Mas a nossa principal atração eram os saraus de sábado à noite, quando, em volta de uma enorme fogueira, todos tinham a chance de apresentar uma música, uma poesia ou uma cena de teatro, além de assistirem a projeções de filmes diversos e de vídeos das ações do próprio movimento, feitos pela Brigada de Guerrilha Cultural, nome do coletivo de cultura do movimento.
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Um companheiro, certa vez, disse que “o sarau é a forma da arte da periferia”, porque é democrático, porque todos têm direito a serem artistas, mesmo os tímidos e os desafinados. Nesses dias, facilmente reuníamos mais de cem, às vezes duzentas pessoas. Outro companheiro percebeu que o sarau era uma espécie de “ensaio para a assembléia”, uma vez que permitia que as pessoas, aos poucos, perdessem a inibição de falar em público, algo da maior importância em um movimento de massa. E mais de uma vez, depois de um certo tempo de acampamento (cujo desgaste a longo prazo é inevitável), percebíamos que os saraus reuniam, às vezes, mais gente que as “assembléias gerais”. Sem contar a própria preparação dos acampados para os saraus (procurando poesias, ensaiando cenas de teatro ou uma apresentação musical etc.) que já instituía, por si mesma, um espaço de elaboração da experiência.
Esses momentos adquiriam então uma importância organizativa para a ocupação, pois também aí eram transmitidas as informações sobre as lutas. Só que serviam, sobretudo, para que os acampados elaborassem, das mais variadas formas, a sua própria experiência de luta e organização. Vez por outra, o clima de acolhimento produzido encorajava alguns dos participantes a pedirem o microfone para darem, espontaneamente, o seu “testemunho”. Contavam o que havia mudado na sua vida desde que haviam chegado ao acampamento e conhecido o movimento. Sempre um “antes” e um “depois”. Uma forma eficaz de consolidar uma identidade coletiva, pois servia aos ouvintes como espelho de sua própria experiência. Por isso, o “testemunho” é uma prática tão utilizada nos cultos das igrejas pentecostais.
Durante os poucos meses que em geral duravam as ocupações do MTST em São Paulo [5] , certamente aconteciam mais festas e apresentações artísticas do que o habitual num bairro da periferia da cidade. Tínhamos então a chance de saciar um pouco de nossa fome de beleza e de alegria, tão relevante como a “fome de pão”. O direito à beleza e à fruição estética – algo tão importante quanto a moradia, mas de difícil acesso para o povão - tem efeitos profundos sobre nossa subjetividade, inclusive terapêuticos. Sempre havia desculpa para realizarmos uma festa no acampamento. Podia ser o seu “aniversário mensal”, a comemoração de uma rodada de negociação favorável com o governo, ou a celebração de uma ação mais contundente, como as marchas massivas e “trancaços” de rodovias. Acreditávamos que estes momentos festivos e o contato com expressões artísticas, as mais variadas, ajudavam a fortalecer os vínculos entre todos que participávamos daquela luta, fortalecendo a própria luta.
Não à toa, uma das grandes funções que as igrejas sempre desempenharam para as classes populares, como nos lembra Frei Betto - ao tratar de alguns traços bem sucedidos do trabalho de base desenvolvido pelas Comunidades Eclesiais de Base nos anos 70 - é justamente o de saciar a necessidade de beleza, fantasia e utopia por meio da produção artística: as músicas, os cantos, as obras de arte, a dança e tudo aquilo que envolve um ritual religioso. Necessidades que as classes médias e a elite, em geral, podem satisfazer indo ao cinema, ao teatro, aos museus, lendo bons livros etc., ou seja, em espaços pouco acessíveis à maioria da classe trabalhadora [6].
Por isso mesmo, já nos anos 20, Trotsky alertava a militância revolucionária e atéia de que era preciso aprender com o exemplo da Igreja, defendendo, como uma das tarefas mais importantes da política cultural que deveria impulsionar a construção do socialismo na URSS, a constituição de espaços que pudessem ocupar a mesma função simbólica que os rituais religiosos desempenhavam para a classe trabalhadora até então, pois neles “o elemento de distração, de entretenimento, de passatempo, desempenha um papel enorme (…) Através da encenação, a igreja atua sobre os sentidos: a visão, a audição, o olfato (do incenso) e sobre a imaginação. A afeição dos homens pelo teatro – ver e ouvir algo novo, brilhante, que os tire do ordinário – é muito forte, indestrutível e insaciável desde a infância até uma idade avançada. Para que as amplas massas renunciem ao formalismo, ao ritual da vida diária, não basta a propaganda anti-religiosa”. [7] Diga-se de passagem, Trotsky apostava no cinema – que dava então os primeiros passos – como forma de concorrer com a igreja a favor dos socialistas. De forma muito mais intuitiva do que é o desejável numa organização política, o sucesso que as atividades artísticas tinham no acampamento nos ensinavam, na prática, as profundas verdades dos ensinamentos de Frei Betto e León Trotsky.
Como que íamos tateando o terreno, baseados somente na relativamente pequena experiência de alguns anos realizando trabalho de base na periferia e informados por um fragmentado conhecimento do imaginário popular. Mas nos faltava muito. Faltava sistematizar tais experiências e, sobretudo, estudo e reflexão coletiva em cima do que estávamos fazendo, além, claro, da garantia de continuidade deste tipo de ação, algo raríssimo num movimento pequeno e com poucos recursos como o nosso.
Seria certamente enriquecedor se pudéssemos contar com companheiros imbuídos de bagagem profissional e experiência teórica e prática, como artistas (além dos poucos com que contávamos), psicólogos e psicanalistas. Mas voltarei a isso adiante. O fato é que, apesar da nossa precariedade, experiências transformadoras eram produzidas cotidianamente, fossem a partir de ações propostas pela militância, ou, sobretudo, da infinidade de relações que eram estabelecidas nos espaços coletivos construídos e mantidos pelas famílias.
Certa vez, caminhando pelo acampamento, meio que procurando alguém para conversar, buscando um prato de comida na hora do almoço, encontrei Sara na cozinha de seu grupo. Depois dos habituais cumprimentos e de um ou outro comentário sobre a comida, de cheiro convidativo, Sara me confessava que há muito tempo não se sentia tão bem, que inclusive parara de tomar seus “remédios pros nervos”, que ela já tomava há meses.
“Fui ao médico essa semana, e ele disse que eu tava curada, que não precisava mais tomar remédio”, me contava empolgada. E continuou: “Eu contei pro doutor: ‘Dotô’, eu tô curada por que tô lá no sem teto, na invasão do Valo Velho. Conheci um monte de gente, tô lá na cozinha do grupo 4, faço comida pra uma pá de gente todo dia, converso muito, vou nas marchas, me divirto. Não preciso mais de remédio”.
E como se não bastasse contar a história, Sara me puxou até o seu barraco. “Eu só quero te mostrar uma coisinha, é só um segundo”. Ela nem precisou insistir, pois já me deixara curioso. E puxando uma caixinha de tarja preta, com cartelas cheias de comprimidos, me disse orgulhosa: “Tá aqui, ó! São 150 comprimidos. Eu tomava cinco desses por dia. Mas eu não tomo nenhum há 30 dias, desde o dia em que cheguei aqui. Agora você acredita?”
Relatos como esses, de curas de depressão, sobretudo de mulheres, eu ouvi aos montes nas várias ocupações de que participei. Fossem pessoalmente das “curadas”, ou através de relatos de outros militantes, eram inúmeras as histórias que nos eram contadas pelo povo. Havia ainda um caso extremo nesse sentido: uma companheira nossa, Luzia, que até hoje é muito próxima do movimento, uma vez me contou que antes da primeira ocupação em que ela se juntou a nós (a “Chico Mendes”, em setembro de 2005), encontrava-se com uma depressão profunda, tomando medicamento há meses.
379844Dias depois de começar a participar das atividades (marchas, reuniões, grandes assembléias) e de se engajar com entusiasmo em uma das cozinhas do acampamento e na “ciranda” [8] , sentiu-se curada e parou de tomar os remédios. Foram 8 meses de acampamento. Veio o despejo e ela voltou à sua casa, continuando a comparecer às nossas assembléias em praças públicas e participando de todas as lutas que fazíamos. No entanto, dizia ela, sem o acampamento voltou a cair em depressão. Dez meses – intermináveis para Luzia – se passaram entre o despejo e uma nova ocupação do movimento (a “João Cândido”, em março de 2007). Neste período, contou: “eu ficava passando em frente ao terreno que agora tá vazio, e chegava a sonhar que a gente ocupava novamente”.
Ela esteve conosco desde a noite da nova ocupação e, já “experiente”, logo se meteu a contribuir com a organização de alguns dos grupos e suas respectivas cozinhas, além de ajudar a organizar atividades para as crianças. “Tô aqui pra ajudar, como me ajudaram antes! Nem quero saber de cadastro, nem de lista de presença, nem nada!” Dois meses se passaram no novo acampamento, mas o despejo veio mais rápido dessa vez. Ela me contou essa história uns três dias antes de sermos despejados da ocupação João Cândido. E sem conseguir conter as lágrimas que vertiam de seus olhos já vermelhos e marejados, ela suplicava:
“Quando é que vamos fazer outra ocupação? Porque eu sei que quando a gente sair daqui, vou voltar pra casa e vou ficar deprimida de novo”. Como diria Pichón-Rivière, tudo indica que a intensa experiência dos acampamentos representavam para Luzia um lugar, um “enquadre”, no qual ela podia “depositar a sua loucura” e superar sua depressão [9] . Talvez por isso, uns dez meses depois dessa súplica, lá estava ela conosco em mais uma ocupação na região onde ela morava. Provavelmente, o caso de Luzia é dos mais extremos, mas estou convencido de que, para muito mais gente (como igualmente para mim), o acampamento era um lugar propício para “depositar loucuras”.
Alguns dias antes dessa conversa com Luzia, já havia sido decretada a ordem de despejo para a qual não cabia mais nenhum recurso jurídico. Claro, a possibilidade de resistência estava descartada. O comando da Polícia Militar já havia se reunido conosco e anunciado a utilização de um efetivo de mais de mil policiais para cumprir a reintegração de posse. Qualquer resistência, nestas condições, seria suicida. Nossa tarefa na militância era agora ajudar nos preparativos para a nossa saída e propor a organização das famílias em núcleos nos seus bairros de origem a fim de nos mantermos unidos e organizados, pois ainda teríamos de realizar inúmeras outras marchas até a prefeitura e o palácio do governo do estado.
Dividimo-nos em duplas de militantes que ficaram responsáveis por conversar com todos os grupos do acampamento, pois era preciso mais do que uma assembléia geral para tratar das questões. Numa dessas conversas, testemunhei um diálogo surpreendente entre um companheiro e uma companheira acampados.
Reunimos as famílias de um dos grupos, numa reunião com cerca de 60 pessoas. Era a penúltima do dia que cabia a mim e Ana, minha dupla. Na conversa, resgatamos toda a trajetória daquele acampamento, das nossas dificuldades e das nossas conquistas, mostrando como já havíamos feito história, mas como a nossa luta pelo direito à moradia estava apenas começando. De repente, o Alemão, nitidamente emocionado, pediu a palavra. Era fim de tarde e um pôr do sol daqueles ajudou a produzir uma tocante mística em nossa pequena reunião. Alemão havia perdido um irmão há poucos dias e vários de nós havíamos ido ao enterro. O companheiro disse mais ou menos assim:
“Vocês sabem que perdi meu irmão e tá sendo muito duro pra mim. Depois do enterro, voltamos pra casa e meu pai pirou e ficou falando um monte de besteira pra minha mãe. Olha, eu quase saí na mão com ele, mas eu me segurei. Se fosse uns meses atrás, eu batia nele, mas achei melhor ir embora. Aí, pensei: vou pro acampamento esfriar a cabeça! Aí vim pra cá, fiquei dando umas voltas por aqui, conversei com um, conversei com outro. Sabe como é, aqui eu fiz muitos amigos… E fui esfriando a cabeça… Olha, esse lugar faz bem pra gente, e vai ser difícil ter que sair daqui”.
Uma jovem companheira, a Jéssica, que balançava a cabeça concordando com o Alemão, não se conteve e o interrompeu, dizendo:
É verdade, Alemão, é verdade! Isso aqui é uma terapia pra gente, né não?!”.
E o Alemão, de bate-pronto, arrematou genialmente:
“É isso mesmo! É uma terapia! E é melhor do que a [Igreja] Universal [do Reino de Deus], pois aqui a gente não tem que dar dinheiro pra aqueles pastores espertalhões”.
Caímos todos na gargalhada, plenos de cumplicidade.
A reunião estava encerrada. Muito bem encerrada. Saí de lá às pressas, pois eu e a companheira Ana tínhamos de fazer outra reunião antes da noite cair completamente sobre o acampamento, mas no caminho até o outro grupo não podia deixar de pensar naquilo que acabáramos de ouvir.
Não era a primeira vez que eu escutava algum acampado usar a palavra “terapia” para definir o acampamento. De fato, eu também ouvi isso inúmeras vezes. Muitos outros militantes relatam ter ouvido o mesmo. A palavra “terapia” está na boca do povo. Certa vez, cheguei a ouvir a hilariante frase de uma companheira no acampamento: “Isso aqui é como um spa de pobre”.
Penso que esse fenômeno nos revela um certo anseio popular e nos faz pensar que, ao que tudo indica, há uma enorme demanda por “terapia” no interior das classes populares (na verdade, parece tratar-se de uma demanda que atinge a todas as classes, mas é evidente que o calo aperta mais no andar de baixo da pirâmide social, justamente entre as pessoas que menos têm condições de ter acesso a um tratamento digno). Parece-me desnecessário esmiuçar, neste texto, que a precariedade das condições de vida das famílias de baixa renda numa sociedade periférica pós-neoliberal é a base material, e raiz última, dessa demanda por “terapia”.
De alguma maneira – que precisamos urgentemente entender melhor - parece que a experiência de um acampamento “sem teto”, e de muitas outras formas de organização e de lutas do proletariado, possuem o potencial de responder, em parte, a essa urgente demanda por terapia para as classes populares. Muitas das centenas, ou milhares, de pessoas que se juntaram à ocupação por uma necessidade básica, a casa, parecem ter encontrado algo além: um tipo de acolhimento e de suporte coletivos forjado nas experiências de lutas massivas e combativas, no trabalho coletivo para manter todas as estruturas coletivas funcionando, nas festas memoráveis e nas inúmeras atividades culturais. Forjado também nas incontáveis “assembléias dos grupos” e nas reuniões de grupos pequenos, ao redor da fogueira, acompanhados de um velho violão, as bebidas e as histórias compartilhadas, quando a escuridão da noite cobria o acampamento. Um conjunto que lhes permitiu restabelecer vínculos perdidos, resgatar sua auto-estima e reconstruir um projeto de futuro. Sem projeto de futuro, nós simplesmente adoecemos.
No entanto, a experiência de um acampamento é uma espécie de “estado de exceção”. Não dura muito, nem pode durar, pois, com o tempo, a precariedade das condições tende a reverter estes aspectos terapêuticos no seu contrário, podendo gerar ainda mais stress. Do mesmo modo, é humanamente impossível manter por muito tempo o nível de mobilização que os primeiro meses de uma ocupação exigem. Temos necessidade de luta e de conquistas materiais, pois sem elas, um movimento popular não sobrevive a longo prazo. Contudo, temos também a necessidade de festejar e de descansar.
Que fique bem claro uma coisa: não mencionei os milhares de conflitos gerados todos os dias no acampamento (que a militância deve sempre tentar mediar), nem as inúmeras privações e necessidades sentidas nos barracos, nem a tensão permanente que sofremos por conta das iminentes investidas policiais contra a ocupação, simplesmente, porque imagino que isto seja uma obviedade para quem conhece a dura realidade das periferias. Em nenhum momento, quis dar a entender que as ocupações são “ilhas de felicidade” em meio a um mar de barbárie. Elas também reproduzem o que há de perverso na sociabilidade individualista introjetada por muitos habitantes dos bairros populares. Mas penso que, para o objetivo deste texto, valia a pena lançar luz sobre estes lampejos de uma “outra sociabilidade”, que logramos sustentar precariamente nas ocupações.
E, principalmente, é preciso ressaltar que, se o movimento não consegue dar continuidade ao trabalho de organização nos bairros, como costuma acontecer com os movimentos populares urbanos nos tempos bicudos em que vivemos, tais efeitos tendem a ser esmagados nas engrenagens do cotidiano da periferia. É preciso que saibamos conciliar a dinâmica específica das lutas com atividades cotidianas, digamos, mais rotineiras, pois uma hora ou outra, temos de voltar ao ritmo de vida, filhos, trabalho etc. Se não formos capazes de intervir na vida cotidiana da classe, então estaremos fadados ao fracasso. Esse era o maior limite das experiências que acabei de relatar. A verdade é que praticamente nenhum movimento popular urbano tem hoje uma inserção nos bairros periféricos realmente enraizada, a ponto de se transformar na própria organização cotidiana da comunidade, em suas diversas esferas: o trabalho coletivo, o lazer, a formação, a saúde da comunidade etc.
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Isso me parece fundamental se quisermos, de fato, construir um poder popular contra-hegemônico na sociedade, mas será preciso fazer muito mais do que ocupações para isso. Nem só de pão vive o homem. Nem só de acampamentos por moradia pode viver uma organização política que ambiciona transformar a sociedade. No entanto, creio que as experiências dos acampamentos nos ajudam a elaborar, no interior de nossas organizações, propostas e métodos de trabalho de base em espaços com atividades cotidianas, que precisam ser fomentados nos bairros onde vive a maioria da classe trabalhadora.
E se trata de um desafio ainda mais urgente se nos deparamos com um fenômeno central da vida cotidiana dos bairros da periferia, que também apareceu na fala dos companheiros que acabei de relembrar: o sucesso retumbante das igrejas pentecostais. Afinal, logo depois de concordar com a Jéssica, que afirmara que o acampamento era “uma terapia pra gente”, o Alemão respondeu com um comentário espontâneo, de uma profundidade sociológica surpreendente, lembrando que se tratava de uma “terapia melhor que a Universal”, pois ali – na ocupação - não precisavam pagar o dízimo.
Ora, sem nunca ter ouvido falar de Frantz Fanon, o Alemão acabara de atinar para a mesma relação estabelecida pelo nosso psiquiatra guerrilheiro: o caráter terapêutico presente nos rituais religiosos – principalmente em seus elementos catárticos – também pode ser encontrado em processos de organização e mobilização populares que lutam por melhorias, ou profundas transformações, da vida do povo. Afinal, a luta é uma catarse. As festas e as atividades culturais que realizávamos no acampamento também geravam efeitos catárticos. Mas se a terapia religiosa cumpre, em geral, a função de manter a estrutura social como está, a “terapia da luta” tenta curar o indivíduo atacando a origem última de sua doença: as injustas e opressivas condições de vida.
Como venho sugerindo, me parece que o fenômeno da ascensão avassaladora do pentecostalismo no interior das classes populares no Brasil é mais um sintoma que nos revela o quão urgente tem sido a demanda do nosso povo por espaços e práticas terapêuticas. Penso que grande parte do sucesso destas igrejas e de seus pastores se explica pela capacidade que estes vêm demonstrando em dar algum tipo de resposta para as angústias profundas que o povo pobre da periferia vive em seu cotidiano. De forma breve, gostaria de tecer alguns comentários sobre essa questão.
Continua…
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Notas:
[2] As narrativas a seguir são fruto de vivências em acampamentos urbanos durante os anos em que militei no MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), entre começo de 2005 e fim de 2008. Depois disso, me afastei do movimento, junto a muitos outros companheiros, por divergências políticas. Não saberia dizer como o movimento tem organizado suas ocupações hoje em dia. Fica, de todo modo, um registro histórico. Depois disso, me aproximei do MST e hoje sou militante deste movimento, atuando na Regional Grande São Paulo, a primeira regional do Movimento Sem Terra com experiências de lutas propriamente urbanas, como o caso da “Comuna Urbana”, em Jandira, na periferia oeste da região metropolitana. Este é o primeiro projeto de assentamento urbano do movimento no país, onde estamos construindo 128 casas, em regime parcial de mutirão.
[3]
A fala desta companheira, bem como as próximas frases citadas em destaque neste trecho do texto, estão registradas no documentário “2 meses e 23 minutos”, de Rogério Pixote e Fábio Ranzani, feito a partir de entrevistas com mulheres e crianças nas cozinhas do acampamento. Disponível no aqui.
[4]
O vídeo que fizemos sobre a marcha também está disponível aqui.
[5]
Em São Paulo, nos últimos anos, tem sido muito difícil, quase impossível, permanecer em grandes terrenos por muito tempo. Os juízes chegam a emitir ordens de despejo em menos de 2 dias, e somente com muita pressão das mobilizações é que conseguimos permanecer por alguns meses. Assim, ganhamos tempo para tentar negociar com o estado uma solução para as famílias sem teto. Contudo, depois do despejo, propúnhamos continuar nos reunindo em núcleos nos bairros, pois muitas pessoas voltavam à casa onde moravam (de aluguel, de favor em casa de parente, em área de risco etc.).

[6]
Cf. Frei Betto. O que é Comunidade Eclesial de Base. São Paulo, Brasiliense, 1981.
[7]
Cf. León Trotsky. “Iglesia, cine y alcohol” IN: Problemas de la vida cotidiana / El nuevo curso. Buenos Aires, Antídoto, 2005.
[8]
“Ciranda” é como chamamos, no MST e também no MTST, aos espaços de formação infantil, em acampamentos ou assentamentos. Neste caso, o coletivo de educação do MTST desenvolvia atividades formativas e de lazer com as crianças do acampamento, no qual elas podiam elaborar a sua própria experiência, do porquê estarem ali junto com seus pais, o que é o movimento etc., além, claro, de se divertirem.
[9]
Devo esse conceito de Pichón-Rivière a uma conversa com a psicanalista Eliane Berger, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae (São Paulo), um dos principais centros de formação de psicanalistas do país e que foi, também, um espaço fundamental para a formação dos movimentos populares de São Paulo em fins dos 70, bem como da formação do PT.

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