segunda-feira, 4 de março de 2013

A patrulha nunca termina


 
 
 
por Matheus Pichonelli
Não sei se era só naquele tempo ou naquela cidade. Mas, na minha adolescência, havia duas frases distintas, embora similares, usadas por meninos e meninas quando alguém passava arrancando suspiros. Quando era “a” menina dos sonhos, os meninos diziam: “com ela eu casava”. Quando era “o” menino, as meninas diziam: “para ele eu ‘dava’”. Era como se a conquista exigisse uma concessão a princípio indesejada: o “enlace”, para uns, e a “entrega”, para outros. Como uma ordem ancestral reproduzida, imaginava que o casamento era bom negócio apenas para a mulher e o sexo, apenas para meninos.

No Brasil de 2013, ainda há quem não aceite ver uma mulher falando abertamento sobre relacionamento
No Brasil de 2013, ainda há quem não aceite ver uma mulher falando abertamento sobre relacionamento

Naquele tempo (não faz muito) e naquele lugar (nem perto nem longe demais das capitais), as pessoas cresciam sob conotações e nomenclaturas distintas para esconder vocações semelhantes. Só meninas, por exemplo, ouviam que era necessário se dar o valor para ser respeitada. Ou que ir longe demais num primeiro encontro era uma fratura exposta de um caráter desvirtuado. Era a forma de legitimar, de forma direta ou não, direitos e deveres distintos conforme o gênero. Nenhum menino da turma se ofendia ao ser chamado de Don Juan, enquanto o similar feminino não só era ofensivo como não tinha paralelo na literatura. Os destinos de Madame Bovary, Anna Karenina e Luísa Mendonça funcionavam mais ou menos como o pôster de um corpo estendido ao chão com os dizeres “Seja Herói”.
Lembrando de tudo, tudo parece distante: um tempo em que a revolução sexual ainda não havia fincado bandeiras definitivas. Pura miragem. No Brasil de 2013 é possível sentir que a inércia conservadora paira feito um cadáver insepulto sobre qualquer tentativa de mudança em direção a um mundo menos paranoico, menos policialesco, menos misógino, menos intolerante, menos reprimido, menos autoritário. Sobretudo com menos privilégios.
Exemplos não faltam. Na quarta-feira 16 a repórter Tory Oliveira publicou, neste site, uma entrevista com a jornalista e escritora Nádia Lapa, de 33 anos (leia clicando AQUI). Ela acaba de lançar um livro chamado Cem Homens em Um Ano em que relata suas experiências sexuais, originalmente narradas em seu blog – hoje reformulado e focado em questões de comportamento. Como uma criminosa comum, Nádia foi alvo de todo tipo de ataque e justiçamento. O crime da escritora foi simplesmente relatar – e pagar com a experiência própria – o quanto ainda é difícil, para uma mulher, assumir que suas vontades muitas vezes passam longe de um padrão pré-moldado de comportamento. Para os defensores deste padrão, é aceitável que os homens joguem no ventilador seu protagonismo em pirotecnias eróticas enquanto as mulheres trocam receitas de bolo e vinagrete para agradar os filhos e o marido. Foi assim durante anos e é bom que, de vez em quando, alguém levante o dedo e lembre que as coisas mudaram.
Nádia não tem desejos nem vocações diferentes de ninguém. A diferença é que aceita falar sobre o assunto. Não sem punição argumentativa.
“Mas o que me interessa saber suas aventuras pessoais?”, perguntam alguns leitores. A vontade é responder: há quem escreva sobre automóveis, sobre armas de guerra, sobre viagens, sobre vinhos, sobre babás, sobre coleção de maços de cigarro. E há quem escreva sobre relacionamentos. Ponto. Se nenhum destes assuntos é útil para você, você tem a opção de não ler. Se for, você tem a opção de ler. Lendo, você pode criar identificação, empatia, trocar impressões, segredos e a sensação de ver dissipadas dúvidas pessoais correntes que até hoje não teve coragem de expressar.
Assim é o princípio da comunicação.
Não há mal algum em não ver identificação e fechar a página. Mas é estranha a campanha para que blog e autora simplesmente deixem de existir, como demonstra a reação dos leitores com estilingues e tridentes a lamentar o “vazio” e “falta de objetivos na vida” da autora ao se dispor a falar de relações efêmeras em detrimento do “verdadeiro amor?” – foi o lamento de uma leitora mais romântica.
É como se houvesse uma pane na cabeça das pessoas criadas a andar em linha reta. Como se virtudes estivessem todas de um lado e as transgressões, de outro. Neste modelo, não há espaço para dúvidas, incoerências, contradições. A ofensa de Nádia, formada em direito e jornalismo (portanto, ocupada com outros planos) foi simplesmente dizer que uma coisa não elimina a outra. Mas as pessoas, a maioria delas, não querem debater. Não estão dispostas a aceitar que temos inclinações diversas para momentos diversos da vida (quanto menos num mesmo dia). Elas precisam acreditar em escolhas sem riscos. Em modelos sem contradições. Precisam acreditar em salvação. Em final feliz. Em príncipes e princesas. Em estabilidade, enfim. Para isso é necessário eliminar quem aponta em outra direção, como se fosse possível eliminar o risco de serem sozinhas, inconstantes, contraditórias e infelizes – ainda que sejam tudo isso fazendo tudo o que se espera delas.
É como sintetizou, em entrevista recente à Folha de S.Paulo, o filósofo Simon May, professor do King’s College e crítico da “supervalorização” do amor nos tempos atuais: “Nada humano é verdadeiramente incondicional, eterno e completamente bom. Essa é uma forma de amor que só Deus pode ter. Esse entendimento gera expectativas altas, que relacionamentos cotidianos não são capazes de suprir”.
Nádia corre o risco de ter entendido isso alguns séculos antes da massa uniformizada de seus contemporâneos que hoje a ataca. Contemporâneos dispostos a passar o resto da vida com olhos, bocas e ouvidos tampados para não deixar passar (e se fixar) um pensamento incômodo: somos (ou queremos ser) todos assim.  Mas, em nome da coerência (e dos bons modos), é melhor evitar novas Nádias e se abraçar a velhas convicções sobre o mundo ideal. Ainda que este mundo ideal esteja fincado em séculos de repressão, violência e privilégios.

PS: O título deste post é inspirado no texto, publicado em seu blog, em que Nádia conta o que ouviu quando decidiu fazer uma tatuagem.



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